Por Alexandre Schwartsman [1]

Carta Mensal – Outubro / 2023

“O vilão faz o ator sentir prazer na maioria dos capítulos. Com o mocinho é só sofrimento.” (Fábio Assunção)

A nova telenovela nacional chama-se “meta fiscal”. Reconheço que o título não é dos mais atraentes, mas – apesar disto – recomendo aos telespectadores seguirem de perto o desenrolar da trama.

Ela começou com a morte matada do regime fiscal anterior, que já vinha cambaleante por motivos que já tive oportunidade de explorar neste espaço: por um conjunto de regras, algumas delas constitucionais, o gasto obrigatório do governo federal (principalmente) aumenta de forma persistente ao longo dos anos, apesar de alguma flutuação em prazos mais curtos.

Tentar conter as despesas com uma regra geral de limite ao gasto cria uma tensão inescapável: o dispêndio obrigatório cresce e o discricionário, onde está o investimento público, tem que contrair para
compensar. Nesta toada, o gasto obrigatório supera com folga o patamar de 90% das despesas primárias (exceto juros) da União.

Ao invés de atacar a causa do problema, o mundo político ataca o limite: de tempos em tempos as
regras são alteradas para acomodar as despesas crescentes.

Não foi diferente no começo do atual governo: o moribundo teto foi substituído pelo “novo
arcabouço fiscal”, que se prometia mais flexível e “moderno”
, mas contra um pano de fundo de
enorme elevação do gasto federal (cerca de R$ 75 bilhões, já corrigidos pelo IPCA) nos nove primeiros meses do ano relativos ao mesmo período de 2022. No ano, o número total deve chegar perto de R$ 100 bilhões nesta base de comparação.

O “novo arcabouço” limita o crescimento da despesa (descontada a inflação) 70% do aumento da receita, mas estabelecendo patamares mínimos (0,6%) e máximos (2,5%) de expansão do gasto além da inflação. Afora isto, introduziu piso para o investimento e permitiu a volta dos pisos de saúde e educação que haviam sido revogados pelo teto.

Dito de outra forma, a suposta “flexibilidade” aumentou o grau de rigidez das despesas, ao que se soma a política de elevação do salário-mínimo acima da inflação, com impacto direto em várias rubricas de gastos. Ao mesmo tempo sinalizou uma trajetória de resultados fiscal primários (sem as despesas com juros), que implicavam déficit zero em 2024 e superávits equivalentes a 0,5% e 1,0% do PIB em 2025 e 2026 respectivamente.

Não é necessário nenhum grande treinamento matemático além das quatro operações para entender a inconsistência da coisa: há metas crescentes para o resultado primário, mas despesas também crescentes (e mais rígidas), coisa que só se resolve com enorme aumento das receitas.

Dada a compreensível resistência da sociedade a mais impostos, tornou-se evidente que a entrega de um resultado primário equilibrado no ano que vem seria tarefa praticamente impossível… Enquanto o ministro da Fazenda reluta em mudar a meta, o presidente da República não tem maiores problemas com isto.

A questão, porém, não é simplesmente reconhecer que a empreitada é bastante complicada, algo que todos deveríamos fazer em nome da transparência do jogo.

O cerne da coisa, para ser sincero, diz respeito aos mecanismos de correção dos desvios.

Não basta, é bom que se diga, ter uma meta (algo que parece ter escapado da percepção nem sempre arguta da ex-presidente Dilma); é necessário também estabelecer o que se pretende fazer caso a meta não seja devidamente alcançada.

Em particular, no caso da meta zero para 2024, as regras atuais – criadas, mais uma vez, pelo atual governo, não por neoliberais empenhados na destruição do país – requerem, por exemplo, que o governo contingenciasse gastos caso suas projeções sinalizassem que a meta não seria alcançada. Da mesma forma, caso os parâmetros do “novo arcabouço” não fossem cumpridos, uma série de “gatilhos” seria disparada, limitando o crescimento das despesas em períodos seguintes.

Mudar a meta, portanto, não representa apenas um “compromisso com a transparência”; implica, a bem da verdade, evitar as penalidades pelo seu descumprimento, permitindo, portanto, que adespesa federal prossiga em trajetória de alta. Consequentemente, também a dívida federalseguirá crescendo, o que costuma redundar em taxas de juros mais altas, principalmente para os títulos de mais longo prazo, já que seus compradores passam a demandar um prêmio maior por conta do risco percebido.

A coisa, porém, se torna mais grave quando pode alterar as decisões futuras do Banco Central acerca da redução da Selic.

Nas palavras do BC: “O Comitê vinha avaliando que a incerteza fiscal se detinha sobre a execução
das metas que haviam sido apresentadas, mas nota que, no período mais recente, cresceu a incerteza em torno da própria meta estabelecida para o resultado fiscal, o que levou a um aumento do prêmio de risco”.

Assim, caso a meta seja elevada, nosso cenário mais provável, o BC terá dificuldade de reduzir a Selic na extensão que originalmente se previa (na casa de 8,75% ao ano no final do ciclo de afrouxamento monetário), sendo possivelmente obrigado a parar ainda antes, com uma taxa de juros superior àquele patamar.

A falta de controle do gasto resulta, portanto, em juros mais altos, o que – se não chega a ser uma revolução teórica – gera novos polos de atrito entre governo e BC, processo complicado pela mudança no comando da instituição marcada para o final de 2024.

Não por outro motivo, o mercado de renda fixa incorpora em seus preços a perspectiva de taxas de inflação mais altas a partir de 2025, bem acima da meta de 3% definida pelo atual governo.
Não é um cenário ruim para a renda fixa, em particular para quem tem também proteção contra a inflação.

Ao menos que mudem o enredo da novela.

[1] Graduado em Administração pela FGV-SP e em Economia pela USP, mestre em Economia pela USP, doutor em Economia pela Universidade da Califórnia em Berkeley. Em 2003 Schwartsman sucedeu a Beny Parnes na Diretoria de Assuntos Internacionais do Banco Central do Brasil, onde permaneceu até 2006. Entre 2006 e 2008, foi economista-chefe para a América Latina do ABN Amro, e de 2008 a 2011 ocupou o mesmo cargo no Grupo Santander Brasil. Atualmente, além de ser sócio-diretor da Schwartsman & Associados Consultoria Econômica, escreve uma coluna semanal para o InfoMoney, além de uma participação semanal na rádio CBN.

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