Por Alexandre Schwartsman [1]
Carta Mensal – Janeiro / 2024
“Estratégia requer reflexão, tática requer observação”
Max Euwe
Está cada vez mais claro que as promessas de “austeridade” (a bem da verdade apenas a eliminação do déficit primário este ano) do atual governo não devem ser levadas a sério.
A manutenção da meta fiscal para este ano (déficit zero) implicaria muito provavelmente na redução do pouco gasto que o Tesouro ainda controla (o chamado “contingenciamento”) e seu possível descumprimento obrigaria a novos cortes nos próximos anos. O comando político já se posicionou a respeito, quer dizer, não aceita em hipótese alguma qualquer diminuição da despesa, vista como elemento crucial nas eleições deste ano e, principalmente, 2026.
A questão passa a ser então sobre as consequências desta provável decisão (a saber, afrouxamento das metas fiscais para 2024 e possivelmente para os demais anos).
Há pelo menos duas ordens de consequências. Uma diz respeito à evolução da demanda interna com a política de gastos ainda no modo estimulativo. Embora não tenhamos ainda os números fechados de 2023 (apenas no começo de março), as indicações até agora, com dados até o terceiro trimestre do ano passado, apontam para a forte evolução do consumo das famílias, que nos 12 meses terminados em setembro de 2023 cresceu 3,7%, à frente do próprio PIB (3,1%).
Muito embora o BC tenha mantido a Selic em 14,25% ao ano até agosto (ou seja, praticamente ao longo do intervalo descrito acima), correspondendo a uma taxa real de juros (ou seja, descontada a inflação esperada) na casa de 6,5-7,0% ao ano, o que deveria desacelerar o consumo, o forte crescimento do volume de transferências do governo para famílias atuou no sentido contrário.
Medido a preços de dezembro do ano passado, o novo Bolsa-Família (até 2022 Auxílio-Brasil) saltou de R$ 63 bilhões nos 12 meses até junho de 2022, quando o governo Bolsonaro determinou sua elevação, para R$ 169 bilhões em 2023, ou seja, um aumento de quase 170%. Some-se a isto outros programas sociais, como o Benefício de Prestação Continuada (BPC), que pulou de R$ 79 bilhões para R$ 94 bilhões, ou o abono salarial (em conjunto com o seguro-desemprego), de R$ 66 bilhões para R$ 74 bilhões e temos, apenas com estes três programas, R$ 130 bilhões a mais de transferências às famílias, sem contar o INSS (outros R$ 76 bilhões).
No frigir dos ovos, mais de R$ 200 bilhões que foram alimentar o crescimento do consumo. Na contramão, porém, disto, o investimento seguiu em queda, refletindo, entre outros fatores, as elevadas taxas reais de juros acima mencionadas.
Dito de outra forma, um forte impulso para a demanda, enquanto o investimento em queda sinaliza menor crescimento da oferta no futuro. Só não se tornou um problema em 2023 porque em boa medida a agricultura literalmente “salvou a lavoura”, acumulando expansão de mais de 14% nos 12 meses até setembro. Isto permitiu atender não só o consumo interno, mas também crescimento das exportações do setor (quase US$ 7 bilhões a mais).
Todavia, não é sempre que podemos (nem devemos) contar com a sorte. A manutenção de uma política fiscal frouxa, em particular no que se refere ao crescimento da despesa, cedo ou tarde colocará dificuldades para o BC baixar ainda mais a taxa de juros.
Há, além disto, preocupações com o comportamento do endividamento do governo neste contexto. Pela métrica empregada pelo Brasil, a dívida bruta dos três níveis de governo deve ter superado 75% do PIB no ano passado (perto de 85% do PIB pela metodologia internacional), comparado a 71% do PIB em 2022.
Estima-se que, para manter a dívida nesta faixa, dada a taxa de juros sobre ela incidente, assim como o crescimento sustentável do PIB, precisaríamos atingir um superávit primário (isto é, desconsiderando o pagamento de juros) superior a 2% do PIB. Qualquer número inferior implicaria novas rodadas de aumento do endividamento público relativo ao PIB e a necessidade de superávits ainda maiores no futuro.
Dada a trajetória esperada de superávits primários bem inferior àquele patamar, não é difícil concluir que a dívida seguirá crescendo mais rapidamente do que o PIB ao longo dos próximos anos.
Obviamente, não há uma relação mecânica entre o tamanho da dívida e preços de mercado. O que sabemos é que num período longo, se a dívida não for controlada, os compradores de papéis do governo pedirão remuneração adicional para aceitar o risco de carregar os “papagaios” nacionais.
Aliás, parte da taxa elevada de juros que observamos (títulos de 10 anos indexados à inflação rendem 5,5-6,0% ao ano acima do IPCA) reflete exatamente esta percepção.
Claro que a dinâmica de mercados financeiros depende de outros fatores, principalmente o que ocorre no ambiente internacional, agora dominado pela perspectiva que os BCs de economias desenvolvidas iniciem seu processo de redução da taxa de juros. Pode até começar um pouco mais tarde do que se imaginava (nos EUA, por exemplo, mais para maio do que para março), mas resta pouca dúvida sobre sua materialização ao longo deste ano.
Isto dito, para quem tem uma visão de prazo mais longo acerca do mercado nacional, em particular no mercado de renda fixa, a persistência de problemas fiscais limita os ganhos potenciais. Vale lembrar que, ainda antes da pandemia, sob a vigência do teto de gastos, que oferecia perspectiva melhor para as contas públicas, juros reais de 10 anos se consolidaram abaixo de 4% ao ano, por vezes na vizinhança dos 3% ao ano.
Mesmo a diferença com relação ao juro americano de mesmo prazo observamos naquele momento uma redução expressiva, sinalizando que muito da nossa queda de juro resultava de fatores domésticos.
Dito de outra forma, a consolidação de taxas de juros reais de longo prazo em patamares mais civilizados, menos distantes das praticadas em países desenvolvidas, depende crucialmente de nossa capacidade de arrumar as contas públicas.
Isto permanece fora de nosso alcance hoje. Ao invés de posicionamento estratégico em ativos brasileiros, seguiremos com posicionamentos táticos, mais ligados a desenvolvimentos externos (no caso, positivos para 2024), do que a uma dinâmica virtuosa do país.
[1]Graduado em Administração pela FGV-SP e em Economia pela USP, mestre em Economia pela USP, doutor em Economia pela Universidade da Califórnia em Berkeley. Em 2003 Schwartsman sucedeu a Beny Parnes na Diretoria de Assuntos Internacionais do Banco Central do Brasil, onde permaneceu até 2006. Entre 2006 e 2008, foi economista-chefe para a América Latina do ABN Amro, e de 2008 a 2011 ocupou o mesmo cargo no Grupo Santander Brasil. Atualmente, além de ser sócio-diretor da Schwartsman & Associados Consultoria Econômica, escreve uma coluna semanal para o InfoMoney, além de uma participação semanal na rádio CBN.