” Por mim se entra no reino das dores, por mim se chega ao padecer eterno, por mim vai a condenada gente. Por amor à justiça a criou-se o poder que tudo pode, pois sou obra de suma sabedoria e do amor supremo. Antes de mim apenas foram criadas as coisas eternas e, como estas eu eternamente existo. Deixai aqui todas as esperanças o vós que entrais”

(Divina Comédia, Canto III)

O mundo hoje se tornou quase o paraíso dos mercados emergentes. Temos uma combinação raríssima: por um lado as economias desenvolvidas, EUA à frente, crescem vigorosamente, em parte pela fraca base de comparação, mas também porque o ritmo de retomada é vigoroso; apesar disto, e das pressões inflacionárias evidentes, os BCs destes países não dão sinais de elevação dos juros; por fim, completando o cenário paradisíaco, preços de commodities – ainda que distantes de seu pico histórico – subiram nada  menos do que 70% nos últimos 12 meses, beneficiando os países produtores.

Por melhor que seja, este cenário é inerentemente instável. Ou o crescimento forte acentua as pressões inflacionárias e eventualmente leva a algum aperto monetário; ou há desaceleração, permitindo a manutenção de taxas de juros baixas. Nossa aposta é na primeira combinação.

O consenso entre analistas aponta para crescimento na casa de 7% para o PIB norte-americano, acompanhado, como se espera, de melhoria expressiva no mercado de trabalho. De fato, desde atingir o fundo do poço em abril de 2020, os EUA geraram pouco mais de 15,5 milhões de novos postos de trabalho, valor ainda insuficiente, é verdade, para repor os 22,4 milhões perdidos apenas em março e abril de 2020. O ritmo de criação de vagas, todavia, voltou a se acelerar no ano e é bastante possível que no início de 2022 os empregos perdidos tenham voltado.

Já a taxa de desemprego evolui de maneira ainda mais favorável, tendo caído abaixo de 6% no final do segundo trimestre do ano, ajudada em parte pela permanência de fração expressiva da população em idade ativa ainda fora da força de trabalho, isto é, sem trabalhar e sem buscar emprego. Ainda não está claro quanto disso se deve aos pagamentos generosos de auxílio e quanto se deve a fatores mais persistentes, desde a mudança demográfica a novos hábitos no período pós-pandemia.

De qualquer forma, impulsionada pela recuperação cíclica e pela rápida vacinação, bem como um estímulo fiscal inédito, a economia americana vem reduzindo velozmente a folga criada pela pandemia. Observa-se simultaneamente aceleração inflacionária inédita sobre o qual o debate ferve. Há, sem dúvida, fatores temporários que colaboram para o fenômeno, mas que, no nosso entender, não explicam sua totalidade.

Todavia, mesmo em face de riscos inflacionários o Federal Reserve mantém uma postura relativamente relaxada. Muito embora em sua última reunião a maioria dos membros do comitê de política monetária tenha sinalizado intenção de elevar as taxas de juros mais cedo do que haviam sugerido anteriormente, ainda falamos de 2023, praticamente dois anos no futuro.

Já preços de mercado indicam uma elevação ainda em 2022, ou seja, operadores já antecipam que o Federal Reserve poderá ter dificuldades de cumprir sua “promessa” de manutenção de juros baixos, possivelmente pelo receio que o processo inflacionário não seja temporário.

Num horizonte de médio prazo, portanto, digamos de 6 a 18 meses, a política monetária americana corre considerável risco de alteração, alterando o cenário instável que hoje vivemos.

Já houve um ensaio de como isto pode afetar o Brasil. Na esteira da divulgação da intenção de membros do comitê de política monetária de elevar a taxa de juros (em 2023, lembremos), o dólar sofreu correção apreciável, sublinhando a vulnerabilidade do país.

Note-se que tal vulnerabilidade nada tem a ver com o desempenho das contas externas do país. Pelo contrário, impulsionadas pela alta das commodities, exportações nacionais têm batido recordes consecutivos, assim como o saldo da balança comercial. À luz disto, o país deve, inclusive, registrar superávit nas transações correntes com o exterior, o primeiro desde 2007.

O problema brasileiro era e continua sendo de natureza fiscal, isto é, relacionado às contas públicas, não apenas do governo federal, mas também de estados e municípios.

Houve, é bom deixar claro, revisão considerável para melhor do cenário fiscal nos últimos meses. Como o crescimento do PIB nominal, isto é, crescimento real da economia e inflação, deve ficar mais alto, a relação dívida-PIB deve ficar abaixo do que se esperava. A inflação mais alta também colabora para corroer as despesas obrigatórias do governo, em particular aposentadorias, pensões e salários do funcionalismo, melhorando o desempenho fiscal.

Não se trata, contudo, de processo sustentável. O BC já se posiciona para tentar reduzir a inflação, que atingiu mais de 8% nos últimos 12 meses, para 3,5% em 2022, o que provavelmente envolverá trazer a Selic para a vizinhança de 7% ao ano, talvez até 7,5% ao ano, ou seja, retornaremos ao mundo de taxas reais de juros (a Selic deduzida a inflação) positivas, ao contrário do observado em 2020 e 2021.

A inflação mais alta também implicará reajustes do salário mínimo, que baliza gastos previdenciários, e do funcionalismo no ano que vem, revertendo os “ganhos” observados para o Tesouro neste ano.

Vale dizer, depois de um “refresco” em 2021, a dívida volta a crescer como proporção do PIB no ano que vem e nos demais, pela ausência de políticas que contenham os gastos públicos de maneira permanente, já que, mesmo se as reformas propostas forem aprovadas, o impacto delas sobre as despesas será insignificante em um horizonte de muitos anos.

De fato, não se espera o retorno a resultados primários positivos antes de 2023, ou, mais provavelmente, 2024, caso o governo consiga manter o teto de gastos, o que parece possível ano que vem, mas segue como desafio para os anos seguintes.

Neste sentido, a janela de oportunidade para colocar a casa em ordem antes que os juros voltem a subir continua sendo desperdiçada. O Brasil dispõe de pouco mais de um ano para fazer o que precisa, mas ainda passará por eleição complicada em 2022, em que as principais candidaturas, pelo menos hoje, não apontam para nenhuma correção expressiva de rota.

Anda difícil manter a esperança.

Por Alexandre Schwartsman

Graduado em Administração pela FGV-SP e em Economia pela USP, mestre em Economia pela USP, doutor em Economia pela Universidade da Califórnia em Berkeley. Em 2003 Schwartsman sucedeu a Beny Parnes na Diretoria de Assuntos Internacionais do Banco Central do Brasil, onde permaneceu até 2006. Entre 2006 e 2008, foi economista-chefe para a América Latina do ABN Amro, e de 2008 a 2011 ocupou o mesmo cargo no Grupo Santander Brasil. Atualmente, além de ser sócio-diretor da Schwartsman & Associados Consultoria Econômica, escreve uma coluna semanal para o InfoMoney, além de uma participação semanal na rádio CBN. 

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