Edição semestral: Alexandre Schwartsman *

“Cesse tudo que a antiga musa canta
Que outro valor mais alto se alevanta . “

Luís de Camões

Em seu romance, O Sol Também Se Levanta, Ernest Hemingway cravou uma de frases típicas: seca, porém sublime. Um empresário, perguntado como tinha ido à falência respondeu: “De dois jeitos. Gradualmente; então de repente”.

Não trato aqui, é bom deixar claro, de um episódio de falência, longe disto, mas da dinâmica peculiar dos mercados financeiros. Processos se arrastam ao longo de meses e trimestres, quando não anos, para então se desenrolarem de forma súbita e, até certo ponto, surpreendente.

Há seis meses falávamos da mudança de percepção dos mercados financeiros acerca da natureza do processo inflacionário, tanto nos EUA como no resto do mundo desenvolvido (e também, como de hábito, entre os países emergentes). Naquele momento o mercado começava a entender que não mais tratávamos de problemas localizados, de duração limitada, mas sim de um fenômeno generalizado e consideravelmente robusto.

De lá para cá os desenvolvimentos na frente inflacionária foram muito piores, contudo, do que se esperava naquele momento. É bem verdade que a guerra no Leste Europeu, evento até então considerado remoto, complicou bastante a situação. Todavia, muito embora a guerra tenha provocado alterações consideráveis em preços de commodities, notadamente no que se refere a energia e alimentos (metais mais no começo do que agora), uma vista d’olhos nas medidas de inflação menos sujeitas a acidentes (“núcleos de inflação”, em economês castiço), revela que a aceleração da inflação global não resultou apenas de choques de commodities, mas de piora também nos preços de bens e serviços apenas indiretamente afetados por tais desenvolvimentos.

As medidas de inflação que desconsideram os efeitos de energia e alimentação, por exemplo, saltaram de 5,5% para 6,0% nos EUA de de dezembro de 2021 a maio de 2022; de 3,4% para 5,2% no Canadá, de 3,8% para 5,4% no Reino Unido e de 2,6% para 3,8% na Zona do Euro. Mesmo no Japão, onde tal medida era negativa, -0,4%, em dezembro de 2021, o número mais recente (abril) mostra aceleração para 0,8%.

Não se trata, é bem verdade, inflação comparável à dos anos 70, mas é inegável que a questão inflacionária piorou bem mais rápido do que se imaginava no começo deste ano.

Em resposta, bancos centrais começaram mais cedo o processo de normalização de suas políticas moentárias (o Banco Central Europeu apenas adiantou que iniciará o process agora em julho) e o fizeram a velocidades superiores às esperadas. Para quem se lembra, em janeiro os mercados de renda fixa americanos apreçavam a Fed Funds rate, a taxa de juros de curtíssimo prazo, baliza para as demais taxas de juros, ao redor de 1,5% ao ano ao final do ciclo de aperto.

Em resposta, o título americano de 10 anos, que ficou ao redor de 1,75% ao ano em janeiro, hoje se encontra próximo a 3,00% ao ano.

O impacto sobre as moedas globais da reavaliação das taxas esperadas de juros entre diferentes país e regiões foi considerável. O dólar se fortaleceu frente às demais moedas de países desenvolvidos, atingindo seu maior patamar desde 2003. O euro, que comprava cerca de US$ 1,13 no começo do ano, agora namora a paridade com a moeda norte-americana, fenômeno inédito nos últimos 20 anos.

As turbulências internacionais atingiram nosso país em cheio, em parte pela sua própria natureza, mas muito também por força das vulnerabilidades acumuladas no período de elevada liquidez.

Embora inicialmente favorecido pela elevação dos preços das commodities, que levaram o real ao seu patamar mais alto desde o primeiro trimestre de 2019, em torno de R$ 4,60-4,70/US$, as fragilidades do país ficaram escancaradas quando os mercados mundiais iniciaram, ainda que de forma relativamente modesta, seu momento de aversão a risco. Assim a Bolsa recuou de 120 mil para 100 mil pontos e o dólar voltou a subir para a vizinhança dos R$ 5,30-5,40.

Não ajudou no processo a postura do governo federal. Em plena campanha eleitoral o presidente, com o apoio algo envergonhado da equipe econômica, tem adotado medidas com o objetivo de melhora da situação a curto prazo, sacrificando perspectivas de mais longo prazo. Posto de outra forma, vendeu o jantar de hoje, assim como almoços e jantares dos próximos dias, para comprar o almoço da tarde.

Não é outra a interpretação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) recentemente aprovada no Senado, que aumentou em pouco mais de R$ 40 bilhões os gastos deste ano, suspendendo não só os efeitos do Teto de Gastos, mas também a Lei Eleitoral, para não falarmos da Lei de Responsabilidade Fiscal.

Não se trata apenas do efeito do aumento de gastos deste ano sobre a dívida, nem tampouco da pisada mais funda no acelerador do gasto público ao mesmo tempo em que o BC ainda pisa no freio monetário. De forma ainda mais grave, o alicerce do regime fiscal, já abalado pela PEC dos Precatórios aprovada no final do ano passado e pela mudança oportunista do indexador do Teto de Gastos, foi pulverizado pela medida.

A ideia que a Constituição ainda poderia obrigar os governos de plantão a adotarem uma postura responsável sobre a evolução do gasto público, notadamente o federal, ruiu com a aprovação da PEC. Ficou demonstrado que nem mesmo a lei máxima do país pode impedir o comportamento oportunista de governos em busca de ganhos políticos de curto prazo.

Soma-se a isto a postura hostil ao controle de gastos por parte do expresidente Lula, que lidera as pesquisas eleitorais, e temos um quadro político que aponta para o retorno à irresponsabilidade fiscal. Não por outro motivo o risco-país, medido pelo Credit Default Swap (CDS) de 5 anos, saltou de patamares próximos a 200 pontos no começo do ano para pouco mais de 300 nos últimos dias, o mais elevado desde o início da pandemia em 2020.

Neste contexto, o BC, em luta contra a inflação ainda teimosamente na casa de dois dígitos (apesar da queda esperada no curto prazo por força da redução do ICMS sobre combustíveis) deve seguir aumentando a Selic para 13,75% ao ano. A taxa de juros real supera os 6% ao ano.

Para que mesmo tomar risco?

* Graduado em Administração pela FGV-SP e em Economia pela USP, mestre em Economia pela USP, doutor em Economia pela Universidade da Califórnia em Berkeley. Em 2003 Schwartsman sucedeu a Beny Parnes na Diretoria de Assuntos Internacionais do Banco Central do Brasil, onde permaneceu até 2006. Entre 2006 e 2008, foi economista-chefe para a América Latina do ABN Amro, e de 2008 a 2011 ocupou o mesmo cargo no Grupo Santander Brasil. Atualmente, além de ser sócio-diretor da Schwartsman & Associados Consultoria Econômica, escreve uma coluna semanal para o InfoMoney, além de uma participação semanal na rádio CBN.

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