Edição semestral: Alexandre Schwartsman *
“You can either surf, or you can fight”
(Lieutenant Colonel Kilgore)
Não faltou quem acreditasse que o presidente Lula, se eleito, faria uma administração, se não igual, ao menos similar à observada em seu primeiro governo, do qual, desde já advirto, participei.
Nunca foi esta minha opinião, em parte pela insistência, ao longo da campanha, quanto a uma sinalização contrária, mesmo necessitando – em particular no segundo turno – convencer eleitores mais ao centro de suas credenciais econômicas. No entanto, o motivo principal do meu ceticismo dizia respeito às dificuldades de replicar o experimento de 2003-2006.
Em que pese o retorno das contas públicas ao azul, pelo menos no que se refere ao resultado primário, as fragilidades estruturais lá permanecem. De fato, a melhora fiscal derivou em boa medida de fatores insustentáveis.
A PEC dos precatórios, aprovada pelo Congresso no final de 2021, reduziu a necessidade de desembolsos, mas não fez as despesas irem embora; apenas as varreu para baixo do metafórico tapete, ainda mais porque os precatórios não pagos não aparecem – como seria correto – nas estatísticas de dívida pública.
Adicionalmente a inflação alta corroeu despesas relacionadas principalmente à previdência e pessoal, mas tais ganhos, nos ensina a história, são temporários. Regras de indexação (no caso do salário mínimo, que baliza as aposentadorias e pensões do INSS), assim como a pressão por reposição salarial no funcionalismo indicam que, cedo ou tarde, estas despesas voltam, como um rio, ao seu curso natural.
Afora isto, o desempenho positivo das receitas, em particular aquelas associadas ao boom de commodities, como royalties e dividendos, são notoriamente cíclicas. Ainda que não saibamos o que vai ocorrer com preços de commodities a cada ano, deve ficar claro que basear o desempenho fiscal em receitas voláteis é, na melhor das hipóteses, uma estratégia de curto prazo, não um ajuste duradouro das contas públicas.
Por fim, e não menos importante, o orçamento enviado ao Congresso em agosto do ano passado, era – mesmo para padrões nacionais – mais fantasioso que as ficções usuais. Em particular, o segredo de Polichinelo: o Auxílio-Brasil estava orçado em R$ 400/mês por família, muito embora, qualquer que fosse o vencedor da eleição, já se soubesse que seria mantido em R$ 600/mês por família (mais o ajuste inflacionário).
Dito de outra forma, o orçamento que já contemplava déficit da ordem de R$ 65 bilhões em 2023 (0,6% do PIB) estava grosseiramente subestimado, em particular no que se refere às despesas.
Era óbvio, portanto, que – independentemente de quem fosse eleito – os dispêndios federais sobrepujariam mais uma vez os limites expressos pelo teto de gastos aprovado em 2016.
É neste contexto, portanto, que se insere mais uma emenda constitucional para “compatibilizar” a despesa real com a que deveria ser observada caso o teto de gastos fosse respeitado.
Não houve, é bom que se diga, nenhum “estelionato eleitoral”: Lula se elegeu prometendo acabar com o teto de gastos e é exatamente isto que vem fazendo. Nenhuma surpresa até aqui, pelo menos não para mim.
A nova PEC, batizada de PEC da transição por alguns, e da Gastança por outros, permite a elevação das despesas em até R$ 200 bilhões em 2023, em parte pela elevação do teto, em parte pela desconsideração de alguns gastos para fins de aferição do limite constitucional. Mais recentemente, o ministro Gilmar Mendes, do STF, abriu, por decisão monocrática, a possibilidade de exclusão do limite o dispêndio associado aos programas assistenciais.
A esta altura fica claro que não há mais cadeado na porta da despesa federal. Quanto aos demais itens da agenda econômica exposta na campanha, como o aumento da participação dos bancos públicos (novamente) no crédito, política industrial, protecionismo, etc., não há ainda anúncios formais (exceto, talvez, a nomeação de Aloisio Mercadante para a presidência do BNDES), mas, dado o histórico recente, é bom não contar com qualquer recuo nesta frente.
Isto dito, restam as consequências.
Algumas já são visíveis, com ênfase no mercado de renda fixa. Mesmo pouco depois do segundo turno os preços neste mercado já apontavam para afrouxamento monetário na segunda metade de 2023, ou seja, um recuo da Selic. Não mais.
O próprio BC, na comunicação referente à última reunião do seu Comitê de Política Monetária (Copom), alertou para os riscos associados ao aumento de gastos, notando os vários canais por onde este fenômeno poderia implicar uma trajetória de convergência mais lenta da inflação à meta, dos efeitos sobre a demanda interna aos impactos do risco fiscal sobre o dólar e, consequentemente, os produtos importados.
Muito embora o BC não tenha (ainda) incorporado estas informações ao seu cenário, nem sequer alterado o balanço de riscos quanto às projeções de inflação (ainda simétricos para baixo e para cima), deve ficar claro o desconforto da autoridade monetária quanto à deterioração fiscal.
O recém-indicado ministro da Fazenda, Fernando Haddad, bem que tenta apresentar retórica mais responsável, prometendo a todo instante, um novo cadeado no portão do gasto, devidamente apelidado de “novo arcabouço fiscal”.
Trata-se, contudo, da proverbial palestra flácida para acalentar bovinos, ou, em linguagem mais popular, “conversa mole para boi dormir”.
O histórico de alterações do teto de gastos, medida inscrita na constituição, requerendo 60% dos votos nas duas casas do Congresso com duas votações em cada uma, sugere que cadeados ainda mais fracos não terão o condão de funcionar como elemento de sinalização quanto à trajetória da despesa.
Conflitos entre limites ao gasto e interesses políticos de curto prazo foram resolvidos sempre em favor do segundo, como mostra o crescimento incessante da despesa federal no Brasil, de 14% do PIB em 1997 para perto de 19% do PIB em 2023.
Sem um programa de reformas que limite a expansão das despesas obrigatórias, como previdência, funcionalismo, indexação de gastos, etc., não há como formular uma promessa crível de controle do dispêndio, independentemente do número de vezes que o novo ministro repetir “novo arcabouço fiscal”.
Lula III está mais perto de Dilma I do que seria saudável para o país.
* Graduado em Administração pela FGV-SP e em Economia pela USP, mestre em Economia pela USP, doutor em Economia pela Universidade da Califórnia em Berkeley. Em 2003 Schwartsman sucedeu a Beny Parnes na Diretoria de Assuntos Internacionais do Banco Central do Brasil, onde permaneceu até 2006. Entre 2006 e 2008, foi economista-chefe para a América Latina do ABN Amro, e de 2008 a 2011 ocupou o mesmo cargo no Grupo Santander Brasil. Atualmente, além de ser sócio-diretor da Schwartsman & Associados Consultoria Econômica, escreve uma coluna semanal para o InfoMoney, além de uma participação semanal na rádio CBN