Anatomia de um desastre

“Improvisation is great — once you’ve mastered your instrument.” Bird

O padrão se repete. Há um anúncio da equipe econômica sobre o desempenho fiscal do país. Os números não são bons. O governo propõe medidas de ajuste. O mercado reage mal. Novas medidas são prometidas, “para a semana que vem”.

Desta vez, foi a revisão bimestral do orçamento. Como se depreende do próprio nome, trata-se de evento corriqueiro, do qual normalmente participam membros do segundo escalão da Fazenda e do Orçamento e Planejamento. Ademais, o orçamento propriamente dito fora aprovado há pouco, em março deste ano, e, portanto, nada sugeriria uma revisão dramática.

Todavia, foi o que enfrentamos.

Houve um desenvolvimento que podemos até chamar de positivo: a equipe econômica abandonou as estimativas claramente exageradas do tanto que dizia esperar conseguir de receitas adicionais pelo voto de qualidade no CARF, R$ 28,6 bilhões este ano, dado que em 2024 mal arrecadou R$ 300 milhões com esta medida. Reduziu também o que esperava receber com “transações tributárias”.

O resultado foi uma queda da ordem de R$ 46 bilhões nas receitas líquidas da União (após transferências a estados e municípios). Ruim, mas, ao menos, realista (talvez).

Ao mesmo tempo, também reconheceu, dois meses depois de aprovar o orçamento, que as despesas obrigatórias, em particular a Previdência, estavam subestimadas, ameaçando assim romper o limite dos gastos determinados pelo agora “velho” arcabouço fiscal, o que os forçou a reduzir em R$ 10 bilhões a despesa discricionária, isto é, a minúscula parcela que ainda controlam do orçamento federal.

Ainda assim, entre queda da receita e aumento das despesas, o déficit no orçamento, originalmente estimado em pouco menos de R$ 30 bilhões em março, se transformaria em déficit de R$ 97 bilhões na revisão de maio.

Ocorre que – mesmo deduzindo deste valor R$ 45 bilhões de pagamentos de precatórios – o déficit para aferição das metas fiscais ficaria na casa de R$ 52 bilhões, enquanto o maior valor admissível (o limite inferior do intervalo da meta fiscal) é de R$ 31 bilhões. Foram, desta forma, também forçados a anunciar um “contingenciamento de gastos” perto de R$ 21 bilhões. E isto porque calibraram as medidas para o limite inferior, não para o centro da meta fiscal.

Entre “contingenciamento” e “bloqueio”, portanto, seria um “corte de gastos” de R$ 31 bilhões. Seria, porque, na prática, depois de tamanha ginástica, o gasto estimado em maio é R$ 5 bilhões maior do que o estimado em março. Não houve corte algum, como de hábito.

Tivesse parado aí, a notícia seria ruim, mas talvez palatável.

O que jogou o proverbial balde de água fria no mercado foi a confissão que tais números – bastante ruins, como argumentamos – incluíam a elevação do IOF, que, em tese, arrecadaria mais R$ 25 bilhões para o Tesouro Nacional.

Pareceria uma escolha óbvia, dado que o IOF – supostamente um imposto regulatório – não precisa obedecer, como os demais impostos, o princípio da

anualidade, nem requereria aprovação do Congresso: bastaria um decreto presidencial.

Trata-se, é claro, de manobra oportunista, mas sem, diga-se, o menor senso de oportunidade.

A imposição de 3,5% nas remessas de fundos de investimento para o exterior foi percebida – corretamente – como tentativa de controle de capitais, motivando reação negativa do mercado financeiro e um vexatório recuo ainda antes da meia-noite do dia do anúncio.

Seus efeitos sobre os custos do crédito de curto prazo, de que dependem pequenas e médias empresas, são devastadores.  Em outras frentes, como no caso da tributação dos VGBL para aplicações superiores a R$ 50 mil por mês, não são operacionalizáveis.

Em suma, a elevação do IOF é uma demonstração clara do improviso, despreparo e amadorismo da equipe econômica. Não por outro motivo, o ministro da Fazenda submeteu-se a um ultimato do comando do Congresso, que ameaçou revogar o decreto presidencial, evento raro na história da República.

O problema é que, sem R$ 25 bilhões, nem o limite inferior da meta fiscal é atingido. Restam, portanto, três opções: (a) aumentar o contingenciamento em R$ 25 bilhões; (b) mudar a meta fiscal; ou (c) buscar novas receitas.

A opção (a) é politicamente intragável para um governo cuja aprovação cai a cada dia e vê no gasto público uma forma de retardar, impedir, ou, com sorte, reverter o processo.

Já a opção (b) foi escolhida no ano passado. O resultado foi a marcante desvalorização do real e elevação das taxas de juros, fenômenos que agravariam a inflação e, assim, a aprovação negativa do governo.

Resta tentar elevar as receitas, mas contra o pano de fundo de um Congresso que não parece minimamente disposto a permitir um aumento da carga tributária.

O que sobra, no caso, são receitas não-tributárias, como dividendos de empresas estatais, royalties, adiantamento de concessões, saque de fundos governamentais etc. Em suma, vender o jantar para comprar o almoço.

A verdade é que o arcabouço fiscal, que o próprio governo admitiu ser inviável a partir de 2026, está se tornando inexequível bem mais cedo do que ministra Simone Tebet antecipara.

A despeito disto, apesar de uma reação inicial negativa, o mercado parece ter se recuperado.

Entendemos isto como um fenômeno temporário. A má qualidade das alternativas restantes, resultado das más escolhas de política econômica até agora, sugere que qualquer anúncio – por mais que possa motivar interpretações positivas – cedo ou tarde pesará nos preços de ativos.

Temos ainda um ano e meio do atual governo num contexto de paralisia de medidas adequadas para lidar com os problemas do país. Apenas a expectativa de transição de poder, dadas as pesquisas mais recentes, parecem impedir deterioração ainda mais séria.

O tempo se esgota.

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