Por Alexandre Schwartsman
“Should I cool it or should I blow?” – The Clash
Há quem diga que em 2027, independentemente do resultado das eleições presidenciais do ano que vem, o ajuste fiscal terá que ocorrer.
Se o sentido de “terá que ocorrer” na frase anterior for de uma recomendação, isto é, de algo que é necessário, não poderia concordar mais. Aliás, iria até mais longe: não usaria o tempo futuro, mas o presente (“tem que ocorrer”), e só não uso o pretérito (“teve que ocorrer”) porque a realidade não deixa.
Se, porém, for no sentido de algo que efetivamente acontecerá, minha concordância cai a zero. Sim, é possível e necessário mudar o rumo da política fiscal, mas isto não cairá do céu: é preciso uma combinação precisa de convicção, portanto vontade política, e condições políticas concretas para que isto se torne uma realidade.
Comecemos entendendo o tamanho do desafio. A dívida do governo corresponde hoje a 80% do PIB; se usarmos os critérios do FMI, que permitem a comparação com os demais países, seria 90% do PIB, mas vamos ficar com o número mais modesto. Já a taxa de juros que incide em média sobre esta dívida ficou ao redor de 12% nos últimos 12 meses, um pouco abaixo da taxa Selic no mesmo período, 13%.
Deduzida a inflação, em torno de 5%, temos uma taxa real de juros de aproximadamente 7% ao ano. Aplicada a uma dívida de 80% do PIB, este juro real faz a dívida crescer o equivalente a 5,6% do PIB a cada ano (0,056 X 0,80).
No sentido contrário, o crescimento da economia faz com que a relação entre a dívida e o PIB caia. Tomemos, para fins do presente cálculo, que a economia consiga crescer indefinidamente a 3% ao ano sem causar desequilíbrios associados à inflação, ou ao balanço de pagamentos. Isto faria com que a dívida caísse a cada ano o equivalente a 2,4% do PIB (0,03 X 0,80).
Assim, o excesso de juros sobre o crescimento corresponderia a 3,2% do PIB a cada ano (5,6% – 2,4%). Portanto, para impedir a dívida de crescer, o governo precisa gerar um excesso de receitas sobre suas despesas não-financeiras (superávit primário) equivalente a 3,2% do PIB.
É bem verdade que, caso fosse possível gerar tamanho superávit primário, a taxa de juros seria bem mais baixa. Por exemplo, em 2018 e 2019, quando não havia ainda superávit primário, mas a crença no teto de gastos como instrumento de ajuste era elevada, o juro real sobre a dívida era pouco inferior a 4% ao ano. Se fosse possível replicar tal condição, bastaria um superávit de 0,8% do PIB a cada ano para estabilizar a dívida pública.
Isto dito, vamos tomar como objetivo algo no meio do caminho, um superávit na casa de 2% do PIB, correspondente hoje a R$ 250 bilhões.
O resultado observado das contas públicas, por outro lado, mostra um déficit de R$ 35 bilhões, ou seja, 0,3% do PIB. É necessário, portanto, ajuste de R$ 285 bilhões, ou 2,3% do PIB para colocar a casa fiscal em ordem.
Dada a conhecida (e correta) resistência do Congresso a aumentar a carga tributária o ajuste teria que se dar pela via da redução das despesas. No caso do governo federal, estas representaram R$ 2,4 trilhões nos 12 meses até setembro, ou R$ 2,6 trilhões (18,8% do PIB) no orçamento do ano que vem. A redução de gastos teria que atingir perto de 11% de toda despesa federal.

Note-se que, de acordo com a projeção orçamentária para 2026, a despesa discricionária do governo federal atingiria pouco menos de R$ 230 bilhões. Isto é, se fosse possível (não é) cortar todo gasto discricionário no ano que vem, ainda assim faltariam R$ 55 bilhões para atingir nosso objetivo.
Este cálculo sugere que o ajuste fiscal no Brasil, idealmente, tem que se concentrar no gasto obrigatório, notadamente a previdência (R$ 1,1 trilhão), e os programas sociais (cerca de R$ 400 bilhões, entre Bolsa-Família, BPC, abono e seguro-desemprego), cada um deles regido por legislação às vezes constitucional.
Assim, um ajuste, mesmo que não imediato, do gasto requer mudanças profundas nas regras que determinam a evolução das despesas previdenciárias e sociais, pauta politicamente complicada, para colocar de forma delicada.
À luz disto, considere a chance de Lula pôr em prática este tipo de medida caso vença as eleições de 2026. Uma rápida reflexão sugere que as chances são baixíssimas, para não dizer inexistentes. A começar pela política adotada no atual governo, diametralmente oposta à recomendação.
Mais importante, porém, seria entender as motivações de Lula para enveredar pelo caminho estreito e tortuoso da responsabilidade fiscal, supondo que seja eleito apesar (ou talvez por conta) dos descalabros fiscais cometidos até agora. Tendo obtido sucesso nas eleições, por que mesmo que o presidente mudaria a orientação da política a que ele atribuiria o sucesso nas urnas?
Por fim, e ainda mais relevante, as condições políticas para promover o ajuste fiscal para quem se elege numa plataforma que vilifica esta prática são extraordinariamente complicadas.
Não precisamos recuar muito no tempo. Em 2014, recém reeleita, e enfrentando enormes dificuldades depois de “ter feito o diabo” para vencer o pleito, Dilma Rousseff tentou uma mudança radical de rumo da política econômica: demitiu seu ministro da Fazenda, Guido Mantega, e convocou Joaquim Levy – ex-secretário do Tesouro, apelidado de “mãos-de-tesoura” por sua conduta austera – para a função.
A história é testemunha do fiasco. Assim como na história do jogador de futebol brasileiro na Itália, que esqueceu o português e jamais aprendeu o italiano, o governo Dilma perdeu o apoio popular pelo “estelionato eleitoral” e jamais obteve o apoio do Congresso. Terminou impedida, menos de um ano e meio após o início de seu segundo mandato.
Alertado pela experiência de Dilma Rousseff, Lula provavelmente sequer tentaria a mudança de política, mesmo que acreditasse (ou, pela força das circunstâncias, fosse forçado a acreditar) nela. E, caso tentasse, enfrentaria uma sociedade mais polarizada e um Congresso ainda mais hostil do que o que levou Dilma Rousseff ao impeachment.
A conclusão é que a mudança do rumo da política econômica requer também a mudança do comando político do país. Fique claro que entendemos isto como condição necessária, ainda que não suficiente, para o ajuste fiscal.
De qualquer forma, as chances de mudar o atual estado de coisas depende, e muito, do resultado eleitoral do ano que vem.
O Brasil enfrentará mais uma encruzilhada decisiva em 2026. O resultado ditará o sucesso ou fracasso do país nos próximos anos.

