Apertem os cintos, o piloto sumiu
Por Alexandre Schwartsman1

Na última carta chamamos a atenção para a incerteza acerca da política comercial dos EUA, em particular as idas e vindas referentes a tarifas. Não é que a incerteza tenha desaparecido, mas, em retrospecto, parece que estávamos melhor no escuro do que agora sabendo como o governo Trump determinou a nova estrutura de proteção comercial.

A tarifa média norte-americana deve superar os maiores valores em cerca de um século, acima, inclusive, das prevalecentes sob a Lei Smoot-Hawley, nos anos 30, que ajudaram a aprofundar os efeitos negativos da Grande Depressão. As medidas atuais devem ter impactos tanto sobre a atividade econômica como sobre preços, nenhum deles no sentido positivo, pelo contrário.

O raciocínio que levou à adoção das tarifas é fundamentalmente equivocado. O governo americano associa déficits comerciais a prejuízos para o país, entendendo que o crescimento das importações impediria o crescimento mais forte do PIB. A mera inspeção dos dados referentes ao desempenho econômico dos EUA deveria bastar para demonstrar o equívoco desta visão.

A taxa de desemprego se manteve entre 3,5% e 4,0% nos últimos três anos, patamar, diga-se, similar ao que prevalecia logo antes da pandemia.

Para todos os efeitos, falamos de um país que operava no seu potencial e crescia a ritmo de 2,5-3,0% ao ano, ao mesmo tempo em que o produto por hora trabalhado aumentou quase 2% ao ano durante todo o século XXI, apesar da crise do subprime e da pandemia.

A economia americana teve, em outras palavras, desempenho muito superior ao de seus pares em praticamente qualquer horizonte temporal que se escolha, em particular relativamente à Europa. O crescimento da produtividade do período refletiu, entre outras coisas, exatamente aquilo que se espera do comércio internacional, isto é, a especialização de cada economia naquilo que faz de melhor.

As tarifas foram criadas para reduzir as importações. Se bem-sucedidas neste objetivo, seu efeito seria o de, para começar, reduzir a produtividade. Como não há qualquer contingente relevante de trabalhadores (ou de capital) desempregados agora, que possam ser empregados na produção do que até agora era importado, será necessário retirar trabalhadores e capital de suas atuais ocupações para voltar a produzir coisas como roupas e calçados, automóveis e computadores, até agora oriundos de outros países.

Caso os custos nos EUA sejam menores que nestes países a medida seria benéfica. Porém, exatamente por serem importados sabemos que não é este o caso, ou seja, tarifas devem, como afirmamos, derrubar a produtividade do trabalhador norte-americano.

Adicionalmente, para que produtores locais resolvam deslocar recursos para estas atividades, é necessário que os preços dos produtos até então importados subam, senão não haveria motivo para aumentar a produção. Ou seja, tarifas também têm impactos inflacionários.

Para agravar a questão, no chamado Liberation Day, o governo impôs tarifas diferenciadas por país, calculadas a partir do tamanho do superávit que cada um destes países registrou no comércio com os EUA.

Vale dizer, além da busca sem sentido de eliminação do déficit comercial como um todo, o governo almeja a eliminação de cada déficit bilateral, independentemente da origem do resultado, atribuído pelos formuladores de política a “distorções” que impediriam o sucesso do produtor americano.

O conjunto da obra é caótico. Cadeias de suprimentos forjadas durante décadas terão que ser refeitas, não se sabe bem a que custo. Investimentos são paralisados à luz das incertezas associadas a tal processo.

Por fim, a possibilidade bastante concreta de retaliações por parte dos países afetados agrava os problemas descritos acima e produz um quadro extraordinariamente complicado, em que se unem, de maneira inusitada, queda de atividade econômica com preços em alta.

A reação dos mercados tem dado mais peso à retração da atividade: a bolsa cai, assim como as taxas de juros, estas últimas refletindo a expectativa que o Federal Reserve reaja à queda do produto da forma que costuma, isto é, reduzindo a taxa básica de juros, a Fed Funds Rate. As taxas de juros para os horizontes mais curtos, 1 a 2 anos, que refletem mais de perto as estimativas da reação do Federal Reserve, que se encontravam ao redor de 4,2% aa no início de 2025, agora atingem abaixo de 4% aa.

Na esteira deste desenvolvimento, o dólar perde valor ante as demais moedas de países desenvolvidos.

Ao mesmo tempo, porém, há temores sobre possíveis impactos inflacionários das tarifas, no caso “vitaminadas” pela fraqueza do dólar. Não é um problema que o Federal Reserve tenha enfrentado nas últimas décadas, quando a inflação tipicamente se moveu em linha com a atividade econômica.

A depender da intensidade deste impacto, bem como da reação de consumidores e trabalhadores afetados pelos preços em alta, há a possibilidade concreta que eventuais cortes de juros por parte do Fed sejam menores do que os agora antecipados, precisamente para evitar que a inflação suba ainda mais. Como brasileiros, entendemos bem este tipo de dilema; o Fed, que operou por décadas num outro regime de política, deve ter dificuldades para compreender o problema e reagir a ele.

A este respeito, Jerome Powell, presidente do Fed, em discurso recente alertou para as incertezas acerca do futuro da política monetária em face de informações conflitantes. Em suas palavras, “não precisamos ter pressa. Estamos bem-posicionados para esperar por mais clareza antes de considerar quaisquer ajustes em nossa postura”.

Parece, pois, precipitado acreditar que a reação do Fed será a mesma observada em outros momentos. Juros podem até cair, mas as quatro rodadas de redução de 0,25 p.p. esperadas para 2025 não devem ser tomadas como certeza.

No conjunto da obra, o ambiente internacional se tornou mais turbulento. Isto dito, turbulência em si não é uma novidade para quem acompanhou episódios como a pandemia em 2020, a crise do subprime em 2008-09, o default russo em 1998, a crise asiática em 1997, ou mesmo a mexicana em 1994, para ficar apenas nos episódios mais notórios dos últimos 30 anos.

Nunca, porém, o problema se originou de um erro tão crasso de política econômica na principal economia do planeta. Não é a primeira vez que fico nervoso, mas, confesso, é a pior.

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