A estratégia da “luta de classes”.
It’s better to burn out than fade away – Neil Young
A “narrativa” mudou. Até há pouco, o aumento dos impostos, em particular do IOF, era vendido como uma – senão a única – forma de “equilibrar” as contas públicas este ano, embora, a bem da verdade, o tal “equilíbrio” seria correspondente a um déficit primário na casa de R$ 75 bilhões, provavelmente mais.
O decreto legislativo, contudo, que revogou o decreto original, deu ao governo uma oportunidade política. Ao recorrer ao STF para manter o aumento de impostos, o comando político do Planalto aproveitou a deixa para aprofundar a polarização no país, desta vez não contra a oposição em si, mas contra o próprio Congresso, agora denominado nas redes sociais como o “inimigo do povo”.
Esta postura deve ter consequências para os planos fiscais do governo. Em particular, precisa do apoio do Congresso para elevar outros tributos, notadamente sobre as “bets”, as “fintechs”, bem como para a alteração do imposto de renda sobre aplicações financeiras (IR de 5% sobre os papeis hoje isentos, como LCIs, LCAs, CRIs, CRAs, ou debêntures incentivadas, e a unificação do IR sobre os demais títulos em 17,5%). Precisa também do apoio para aprovar a compensação ao aumento da isenção de IR para quem ganha até R$ 5 mil/mês.
Ao adotar o conflito aberto com parlamentares, tanto na Câmara quanto no Senado, o governo deve saber que reduz significativamente as chances de aprovar qualquer uma destas pautas. Se até eu consigo entender isso, há bons motivos para crer que não se trata de uma ação impensada (o que não quer dizer que esteja correta, como veremos).
A mim parece claro que o governo definitivamente abriu mão mesmo da estratégia de buscar certo equilíbrio em suas contas, mesmo através de maiores receitas, para abrir espaço para uma estratégia política com vistas a 2026.
Não é segredo que há muito a administração petista busca uma marca para o terceiro governo de Lula. Os programas sociais, já incorporados à paisagem política do país, não mais representam este papel. Dito de outra forma, a população já entendeu que tais programas podem sobreviver a governos do PT e não mais vota no partido para protegê-los.
Com menos de um ano e meio até as eleições, buscava-se um mote que substituísse Bolsa-Família e afins no imaginário popular como uma marca registrada de Lula e do PT.
A tentativa agora é fazer da “luta de classes”, ou melhor, do conflito entre “pobres” (supostamente representados por Lula e pelo PT) e “ricos” (supostamente apoiados pela oposição e pelo Congresso) a marca de Lula III.
Não me arrisco a prever se a estratégia terá o efeito desejado, mas os riscos são evidentes. Noto que Lula venceu as eleições de 2022 por margem exígua, 50,9% contra 49,1% dos votos válidos, correspondente a 48,6% do total (incluindo nulos e brancos), o que sugere que tal estratégia é, no mínimo, arriscada, já que pode afastar os eleitores centristas (no jargão, o “eleitor mediano”) que apoiaram Lula naquele momento.
Por outro lado, as consequências econômicas desta abordagem são passíveis de análise.

Como notado, a revisão orçamentária de maio aponta para um deficit primário na casa de R$ 75 bilhões contra uma meta anunciada de zero. Tal discrepância é reconciliada porque: (a) o intervalo de tolerância do resultado fiscal admite déficit de até R$ 31 bilhões; e (b) cerca de R$ 45 bilhões de pagamentos de precatórios são descontados dos gastos para fins de aferimento da meta.
Todavia, mesmo este resultado muito ruim, que exige empréstimos adicionais de R$ 75 bilhões, por um lado ainda subestima o total de despesas e, por outro, depende de receitas que, como assinalado, dependem da anuência do Congresso, a mesma que a estratégia política para 2026 agora abre mão.
Assim, é muito provável que o Tesouro não consiga atingir até mesmo esta meta frouxa. Restam essencialmente duas possibilidades: ou bem o governo decide reduzir o gasto discricionário que ainda resta, ou então abandona, de forma explícita ou não, a meta fiscal.
Com uma eleição à vista, a primeira alternativa parece pouco provável. Já havíamos notado no mês passado que a opção pela elevação de impostos refletia na pratica a pouca disposição para reduzir gastos. Nas atuais circunstâncias, parece justo afirmar que tal disposição é agora ainda menor.
Portanto, as chances que a meta de resultado primário tenha que ser alterada para acomodar déficits ainda maiores cresceram bastante nos últimos dias.
Obviamente, o resultado fiscal em si não é um tema político-eleitoral. Suas consequências econômicas, porém, são reais.
O excesso de juro real que o governo brasileiro paga relativamente ao norte-americano já é da ordem de 4,5% ao ano. Com o juro real americano de longo prazo na casa de 2,5%, isto se traduz num juro local próximo a 7,5% ao ano.
Embora o dólar tenha cedido do começo do ano para cá, tal desempenho reflete na verdade o enfraquecimento global da moeda americana, não uma melhora dos fundamentos locais.
Uma deterioração adicional das contas públicas deve impactar negativamente ambas estas grandezas.
Todavia, o mercado a esta altura do campeonato não parece mais reagir, ao menos não de maneira tão marcante, à elevação dos riscos ficais. Ao que parece, operadores já “botaram no preço” uma provável – ainda que longe de certa – derrota de Lula nas eleições do ano que vem e, portanto, uma mudança na orientação de política econômica a partir de 2027.
Tendo a concordar com a primeira parte, mas chamo a atenção que uma possível derrota de Lula é uma condição necessária, mas não suficiente, para que ocorra um ajuste fiscal no Brasil.
A tarefa, é sempre bom lembrar, é hercúlea: segundo o Banco Mundial, o ajuste requerido alcança cerca de 3% do PIB (R$ 350-400 bilhões). Mesmo feito de maneira gradual, requer enorme disciplina, vontade política e uma sólida coalizão no Congresso.
Não é impossível, mas a quase certeza que permeia o mercado hoje precisa ser temperada com muita cautela.