” Que ninguém seja encontrado entre vocês que entregue seu filho ou filha ao fogo, ou que seja um áugure, um adivinho, um vidente, um feiticeiro” .
(Deuteronômio 18,9-11)
Certa vez um amigo de infância, hoje um renomado rabino, me perguntou se o dólar iria subir ou descer num determinado período, questão que não se faz a um economista já escaldado pelas dificuldades (senão a própria impossibilidade) de prever a taxa de câmbio. Tentei dribá-lo, invocando exatamente a proibição bíblica à prática de previsão, ao que fui driblado de volta: “realmente o Deuteronômio proíbe, mas estou pedindo um simples palpite entre amigos”.
Na verdade, mais que a proibição bíblica, o ano de 2020 foi um poderoso alerta acerca da nossa baixa capacidade de previsão, o que, obviamente, não me impede de, mais uma vez, ocupar esse espaço para dizer o que espero de 2021.
Aproveitando que o sarrafo está baixo, não é difícil afirmar que 2021 será melhor que 2020. Por exemplo, com os números de produção industrial até novembro é fácil concluir que a expansão da indústria nesse ano será enorme, nem tanto pela aumento da produção em 2021 propriamente dito, e sim pela reduzida base de comparação. O mesmo se aplica à atividade econômica em geral, seja PIB, ou emprego, ou as vendas no comércio.
Os desafios, nessa mesma linha, também serão maiores, principalmente porque a crise sanitária não apenas adiou a solução de problemas que já eram prementes no começo de 2020, mas adicionalmente os agravou ao longo do ano.
Antes da epidemia havia uma perspectiva de melhora gradativa de contas públicas desde que reformas fossem aprovadas: a administrativa, para lidar com o problema de pessoal (o segundo maior gasto do Tesouro Nacional), a emergencial, para dotar não só o governo federal, mas especialmente os governos subnacionais, de instrumentos para lidar com o aumento persistente dos gastos obrigatórios, assim como a tributária, antigo anseio nacional.
Atendidas tais condições, era possível esperar que o endividamento público fosse se estabilizar num horizonte razoável, de dois a três anos, afastando os riscos fiscais, que nos acompanham ao menos desde 2014. Não foi possível.
À parte o forte aumento do gasto em 2020, seja para apoiar as camadas mais vulneráveis da população (exagerado em retrospecto, mas no sentido correto), seja para resgatar mais uma vez os estados (também exagerado e no sentido oposto ao requerido), a verdade é que as perspectivas para os próximos anos pioraram substancialmente.
Imaginávamos ser possível zerar o déficit primário em 2022-23; hoje sabemos que estaremos no lucro se isso ocorrer antes de 2026-27. O déficit primário para 2021, que se projetava na casa de R$ 60-70 bilhões há pouco mais de um ano, está hoje previsto atingir ao redor de R$ 250 bilhões, o segundo pior da história, inferior apenas ao que deve ter sido registrado em 2020.
O desafio fiscal é, portanto, maior, o tempo mais escasso (um ano perdido), e a vontade política para lidar com o problema… Bem esta parece muito menor.
Há pouco de concreto nas propostas do governo no que diz respeito às reformas. A administrativa, a prevalecer o que foi enviado ao Congresso, não terá repercussões em prazo suficiente para alterar as perspectivas das contas públicas. Já a emergencial permanece envolta em mistério; o pouco que foi divulgado no final do ano passado não justifica qualquer otimismo quanto a seus impactos sobre o gasto num horizonte razoável. Por fim, no que se refere à tributária, sequer existe um projeto, além do infindável vai-e-vem sobre o retorno da CPMF sob novo nome.
Resumindo, o que estava complicado em 2020 do ponto de vista fiscal segue mais complicado em 2021.
O que nos ajuda no momento é o ambiente internacional. Em que pesem a turbulência política dos últimos dias, as dificuldades (para não dizer incompetência) de vários países para avançar na vacinação num contexto de agravamento da epidemia, a verdade é que a elevada liquidez, que se imagina persistente, somada à existência de um conjunto eficaz de vacinas, estimulam a busca pela rentabilidade num mundo marcado por reduzidas taxas de juros.
Vivemos, em linguagem de mercado, um momento “risk on”, o que beneficia não apenas o Brasil, mas o conjunto de emergentes. É bem verdade que o dólar não voltou ao que era antes da crise e talvez sequer volte (não um profecia, apenas um “palpite entre amigo”), mas nossa bolsa recuperou as quedas e mesmo os papéis do governo, após muito estresse, já não se encontram tão longe dos níveis de um ano atrás (a taxa da NTN-B de 10 anos saltou de 3% para 5% ao ano no primeiro trimestre do ano, retornando só agora a níveis próximos a 3%).
As perspectivas para a inflação são boas e, assim, também para a manutenção da Selic a 2% a.a. até meados do ano.
Há, pois, uma “janela de oportunidade” para começar a arrumar a casa antes que as condições internacionais mudem, período que certamente inclui 2021 e, muito provavelmente, 2022 também.
Resta crucialmente saber o que pretendemos fazer com o tempo que nos foi dado e aí voltamos ao pantanose (senão pecaminoso) terreno da profecia.
Arrisco afirmar que a atual administração não tem condições políticas, nem sequer interesse, para aprovar reformas difíceis e trabalhosas. Parece claro que, há muito, o único objetivo do presidente é sua reeleição. A aliança com o Centrão, depois um ano e meio renegando suas próprias origens, reflete mais a preocupação com o impedimento do que um passo para avançar no esforço reformista, o que fica claro desde já, por exemplo, nas articulações para a eleição das Mesas Diretoras da Câmara e Senado.
Adicione-se a isso o elemento complicador do fim do auxílio emergencial, que foi instrumental para a recuperação da demanda por consumo (de bens) e, portanto, para uma queda muito mais modesta do PIB do que se previa no começo da epidemia, bem como para o suporte da população mais vulnerável.
Sem o auxílio não apenas a economia sentirá a queda de renda (havia, em outubro, 9,5 milhões a menos de pessoas empregadas do que em fevereiro), mas a popularidade presidencial será provavelmente reduzida também.
Nesse cenário, o risco é o de retorno do populismo, mais do que avanços no sentido de dotar o país nos próximos anos de instrumentos para lidar com os problemas das contas públicas.
Posto de outra forma, podemos até curtir a festa, mas me parece boa ideia ficar perto da porta de saída.
1 Graduado em Administração pela FGV-SP e em Economia pela USP, mestre em Economia pela USP, doutor em Economia pela Universidade da Califórnia em Berkeley. Em 2003 Schwartsman sucedeu a Beny Parnes na Diretoria de Assuntos Internacionais do Banco Central do Brasil, onde permaneceu até 2006. Entre 2006 e 2008, foi economista-chefe para a América Latina do ABN Amro, e de 2008 a 2011 ocupou o mesmo cargo no Grupo Santander Brasil. Atualmente, além de ser sócio-diretor da Schwartsman & Associados Consultoria Econômica, escreve uma coluna semanal para o InfoMoney, além de uma participação semanal na rádio CBN.